quarta-feira, 26 de junho de 2013

Boaventura: O preço do progresso - Revista Fórum | Revista Fórum

Boaventura: O preço do progresso - Revista Fórum | Revista Fórum:

Enquanto perante as recentes manifestações na Turquia foi imediata a leitura sobre as “duas Turquias”, no caso do Brasil foi mais difícil reconhecer a existência de “dois Brasis”

Com a eleição da Presidente Dilma Rousseff, o Brasil quis acelerar o passo para se tornar uma potência global. Muitas das iniciativas nesse sentido vinham de trás mas tiveram um novo impulso: Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente, Rio +20, em 2012, Campeonato do Mundo de Futebol em 2014, Jogos Olímpicos em 2016, luta por lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU, papel ativo no crescente protagonismo das “economias emergentes”, os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), nomeação de José Graziano da Silva para Diretor-Geral da Organização da Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), em 2012, e de Roberto Azevedo para Diretor-Geral Organização Mundial de Comércio, a partir de 2013, uma política agressiva de exploração dos recursos naturais, tanto no Brasil como em África, nomeadamente em Moçambique, favorecimento da grande agricultura industrial sobretudo para a produção de soja, agro-combustíveis e a criação de gado.Por Boaventura de Sousa Santos, publicado em Carta Maior
Beneficiando-se de uma boa imagem pública internacional granjeada pelo Presidente Lula e as suas políticas de inclusão social, este Brasil desenvolvimentista impôs-se ao mundo como uma potência de tipo novo, benévola e inclusiva. Não podia, pois, ser maior a surpresa internacional perante as manifestações que na última semana levaram para a rua centenas de milhares de pessoas nas principais cidades do país. Enquanto perante as recentes manifestações na Turquia foi imediata a leitura sobre as “duas Turquias”, no caso do Brasil foi mais difícil reconhecer a existência de “dois Brasis”. Mas ela aí está aos olhos de todos. A dificuldade em reconhecê-la reside na própria natureza do “outro Brasil”, um Brasil furtivo a análises simplistas. Esse Brasil é feito de três narrativas e temporalidades.
Dilma tornou claro que as respostas repressivas só agudizam os conflitos e isolam os governos (Wilson Dias/ABr)
A primeira é a narrativa da exclusão social (um dos países mais desiguais do mundo), das oligarquias latifundiárias, do caciquismo violento, de elites políticas restritas e racistas, uma narrativa que remonta à colônia e se tem reproduzido sobre formas sempre mutantes até hoje. A segunda narrativa é a da reivindicação da democracia participativa que remonta aos últimos 25 anos e teve os seus pontos mais altos no processo constituinte que conduziu à Constituição de 1988, nos orçamentos participativos sobre políticas urbanas em centenas de municípios, no impeachment do Presidente Collor de Mello em 1992, na criação de conselhos de cidadãos nas principais áreas de políticas públicas especialmente na saúde e educação aos diferentes níveis da ação estatal (municipal, estadual e federal).
A terceira narrativa tem apenas dez anos de idade e diz respeito às vastas políticas de inclusão social adotadas pelo Presidente Lula da Silva a partir de 2003 e que levaram a uma significativa redução da pobreza, à criação de uma classe média com elevado pendor consumista, ao reconhecimento da discriminação racial contra a população afrodescendente e indígena e às políticas de ação afirmativa e à ampliação do reconhecimento de territórios e quilombolas e indígenas.
O que aconteceu desde que a Presidente Dilma assumiu funções foi a desaceleração ou mesmo estancamento das duas últimas narrativas. E como em política não há vazio, o espaço que elas foram deixando de baldio foi sendo aproveitado pela primeira e mais antiga narrativa que ganhou novo vigor sob as novas roupagens do desenvolvimento capitalista todo o custo, e as novas (e velhas) formas de corrupção. As formas de democracia participativa foram cooptadas, neutralizadas no domínio das grandes infraestruturas e megaprojetos e deixaram de motivar as gerações mais novas, orfãs de vida familiar e comunitária integradora, deslumbradas pelo novo consumismo ou obcecadas pelo desejo dele.
As políticas de inclusão social esgotaram-se e deixaram de corresponder às expectativas de quem se sentia merecedor de mais e melhor. A qualidade de vida urbana piorou em nome dos eventos de prestígio internacional que absorveram os investimentos que deviam melhorar transportes, educação e serviços públicos em geral . O racismo mostrou a sua persistência no tecido social e nas forças policiais. Aumentou o assassinato de líderes indígenas e camponeses, demonizados pelo poder político como “obstáculos ao desenvolvimento” apenas por lutarem pelas suas terras e modos de vida, contra o agronegócio e os megaprojetos de mineração e hidrelétricos (como a barragem de Belo Monte, destinada a fornecer energia barata à indústria extrativa).
A Presidente Dilma foi o termômetro desta mudança insidiosa. Assumiu uma atitude de indisfarçável hostilidade aos movimentos sociais e aos povos indígenas, uma mudança drástica em relação ao seu antecessor. Lutou contra a corrupção mas deixou para os parceiros políticos mais conservadores as agendas que considerou menos importantes. Foi assim que a Comissão de Direitos Humanos, historicamente comprometida com os direitos das minorias, foi entregue a um pastor evangélico homofóbico e promove uma proposta legislativa conhecida como “cura gay”. As manifestações revelam que, longe de ter sido o país que acordou, foi a Presidente quem acordou.
Com os olhos postos na experiência internacional e também nas eleições presidenciais de 2014, a Presidente Dilma tornou claro que as respostas repressivas só agudizam os conflitos e isolam os governos. No mesmo sentido, os presidentes de câmara de nove cidades capitais já decidiram baixar o preço dos transportes. É apenas um começo. Para ele ser consistente é necessário que as duas narrativas (democracia participativa e inclusão social intercultural) retomem o dinamismo que já tiveram. Se assim for, o Brasil estará a mostrar ao mundo que só merece a pena pagar o preço do progresso, aprofundando a democracia, redistribuindo a riqueza criada e reconhecendo a diferença cultural e política daqueles para quem progresso sem dignidade é retrocesso.
Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

sábado, 22 de junho de 2013

Quem são os Vândalos e os violentos?, por Gilvander Luís Moreira

Por Gilvander Luís Moreira[1]

by Racismo Ambiental...

Nos primeiros dias dos justos e necessários protestos na capital de São Paulo, do Movimento Passe Livre, a TV Globo e a mídia em geral estavam chamando todos os manifestantes de vândalos e arruaceiros, atitude criminalizadora.
Quando as manifestações se espalharam pelo país, a mídia começou a fazer uma distinção: “O movimento é pacífico, mas tem uns vândalos no meio que promovem quebradeira”. Provavelmente, os donos do poder midiático, principal “partido” no Brasil, querem conduzir as massas e reduzir as manifestações somente a “paz e amor”, o que não estremecerá o status quo podre do sistema capitalista, ora vigente no Brasil. É hora de resgatarmos a história e fazermos algumas reflexões.
Quem eram os Povos Vândalos? “Os Vândalos eram um povo germânico oriental que penetrou no Império Romano durante o século V e criou um estado no norte da África ocupando a cidade de Cartago, antiga cidade fenícia que fora ocupada pelos romanos desde o fim das Guerras Púnicas. A localização de Cartago às margens do Mediterrâneo era estratégica para os Vândalos. Ali centralizaram seu Estado, e logo após se estabelecerem, saquearam Roma no ano de 455.”[2]
“Ao longo da marcha para o oeste, os Vândalos atingiram a margem do Danúbio e alcançaram o rio Reno, onde entraram em combate com os francos. Aproximadamente vinte mil vândalos morreram no choque entre esses dois povos, sendo que os francos só foram derrotados quando os alanos entraram no combate para auxiliar os vândalos. Em ações ousadas, os Vândalos saquearam Roma durante duas semanas no ano de 455 e foram capazes de resistir ainda a uma frota enviada pelo Império Romano para combatê-los.”[3]
Portanto, a história demonstra que os Vândalos eram um povo digno que lutou aguerridamente contra o imperialismo romano. Logo, não é justo se referir aos Vândalos apenas como arruaceiros. Eles lutavam por direitos.
Ontem, o império romano. Hoje, o império do capital, liderado pelos capitalistas. Assim como os Vândalos lutavam contra a opressão do Império Romano, hoje milhões de brasileiros, nas ruas, lutam não apenas por migalhas, mas por direitos. Vândalos, hoje, não são os que revelam a infinita indignação que toma conta do povo diante de tanta violência provocada por um Estado vassalo do capital e dos capitalistas. Assim, a revolta iniciou com a luta por 0,20 centavos, mas irá muito longe. Não se encerrará sem mudanças substanciais no modelo econômico e político que desgoverna o Brasil.
Quem são os violentos hoje no Brasil?  São os políticos, salvo raras exceções, que não representam o povo, mas, via de regra, defendem interesses de grandes empresas e latifundiários.
Violentos são juízes do Poder Judiciário que não respeitam os princípios constitucionais de respeito à dignidade humana, republicanismo, função social da propriedade e criminalizam os movimentos sociais populares e absolutizam o direito a propriedade para apenas alguns.
Violentos são os administradores públicos e os juízes que abarrotam as prisões, verdadeiros campos de concentração, jogando lá somente os pobres, negros e jovens.
Violentos são os grandes empresários que lucram, roubam e saqueiam a  classe trabalhadora pagando míseros salários e, com intensificação do trabalho e do produtivismo, arrebentam com a saúde dos trabalhadores, empurrando-os para avia crucis do SUS.
Violentos são as grandes mineradoras que, como em Conceição do Mato Dentro, MG, causam uma devastação socioambiental sem precedentes na história. Com coração de pedra, vão dizimando as nascentes de água e deixando crateras, um rastro de destruição.
Violentos são os grandes empresários do transporte público privatizado que lucram bilhões carregando o povo trabalhador como se esse fosse gado para ser transportado em condições indignas e por preço que esfola o povo diariamente.
Violentos são os banqueiros que cometem cotidianamente o pecado da usura e especulando com o dinheiro do povo engordam seu poder econômico às custas de muito sangue humano.
Violentos são os latifundiários que não cumprem a função social da propriedade e sequestram a terra em poucas mãos gananciosas expulsando milhões de camponeses para as periferias das cidades.
Enfim, violentos são os dirigentes da classe dominante que há séculos vêm pisando, humilhando e violentando a classe trabalhadora brasileira. Eis um exemplo: na época da escravidão formal, um cortador de cana cortava de três a quatro toneladas de cana por dia. Hoje, um boia-fria dos canaviais paulistas corta de doze a quatorze toneladas por dia. Por isso, de 2004 a 2006, mais de vinte trabalhadores morreram por exaustão no trabalho.
É contra esses violentos que o povo se rebelou e estará nas ruas até que seus direitos sejam conquistados e efetivados. A luta é por justiça social, por justiça agrária, por justiça ambiental e por direitos humanos. Feliz quem dela participar e também contribuir para que espertalhões de plantão não venham golpear o povo já tão oprimido, mas que está se levantando.
Belo Horizonte, MG, Brasil, 21 de junho de 2013.
Frei Gilvander Luís Moreira – www.gilvander.org.br – gilvanderlm@gmail.com

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; e-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis - Facebook: Gilvander Moreira
[2] http://pt.wikipedia.org/wiki/V%C3%A2ndalos , acesso em 21/06/2013.
[3] Antônio Gasparetto Júnior in http://www.infoescola.com/povos-germanicos/vandalos/ , acesso em 21/06/2013.
Enviada por José Carlos para Combate Racismo Ambiental.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

As Igrejas na Europa Viram clubes, Museus e Cafés...isso é ruim mesmo???





            Há muitos anos isso tem aparecido na mídia especializada ou não. São noticias horripilantes para o brasileiro médio, de que igrejas na Europa têm sido transformadas em espaço com outras finalidades, dentre elas, bares, museus, templos de outras religiões e mesmo boates, se citarmos aquelas que simplesmente encontram-se fechadas.
            Qual o problema? Bem o problema é que a leitura deste fenômeno precisa melhorar, porque ela geralmente não contempla o problema corretamente (no meu ponto de vista), de modo a não relacionar a causa correta ao problema verdadeiro. Precisamos, portanto, entender essa relação, de modo a se desenvolver uma resposta mais coerente ao problema religioso contemporâneo.
            Via de Regra, toda religião delimita para si um dado espaço, e tempo, religioso com a finalidade de estabelecer ali regras (formas e psicossociais) diferenciadas com fins a sua prática espiritual. Isso tem motivos razoáveis, os quais qualquer pessoa que se incomoda com celular tocando durante uma atividade qualquer pode conceber por si mesmo. Quanto aos motivos espirituais, os quais geram regras administrativas de energias e de contextos, de modo que o participante seja guiado rumo ao objeto de contemplação.
            O Termo sagrada tem relação com a noção de separado, que agrega capital simbólico (mana) a objetos, espaços ou papeis sociais com finalidade de promover ao devoto da religião a tal experiência. Isso, nos textos antropológicos mais conservadores é categorizado como técnica religiosa, que dependendo de como olhamos, é o que diferencia as diversas religiões.
            Posto isso, faz todo sentido uma dada religião ter seu templo, ter suas regras e rituais, de modo a promover sua ideia e seus valores. Logicamente que teólogos cristãos do final do século XX já apontavam[1] a necessidade das igrejas mudarem o foco do templo para o ministério, afirmando que a ênfase administrativa no templo era algo característico de igrejas rurais, coisa não coerente com uma dinâmica urbana.
            Logicamente que na cidade os templos serão necessários, mas com uma finalidade diferente, tendo em vista que tendem a serem transformados os templos em shoppings Center [2] que atendam o maior numero de necessidades possíveis. O Problema disso, é que para os Geógrafos, os shoppings são chamados de não-locais, conquanto não tenha identidade própria e não tem reder de relação social consistente. A igreja (rural?) é um local religioso por natureza, o qual gera não apenas relação entre o frequentador e as coisas alis presentes, mas gera identidade local por meio interpessoalidade das pessoas que se relacionam por meio das mesmas ideias e valores.
            Se a igreja transforma-se me não-local, qualquer igreja serve, torna-se não-igreja, como os canais da TV, e, portanto, as relações sociais deixam de ser importantes, perdem energia, assim como a doutrina e os valores.
            Logicamente que a igreja evangélica pentecostal é pouco consciente de suas ideias e valores, pois acreditam serem “de Deus” e não fazem auto-reflexão com respeito ao seus discurso, que nada mais é do que o conjunto de dispositivos desenvolvidos social-historicamente. Isso impede uma reflexão bíblica e a percepção da ação dos seus atores e de suas práticas religiosas e administrativas, muito parecido com o que houve na Europa antes da falência do sistema antigo.
            Então, ao olhar para o problema europeu, é importante entendermos que as igrejas tradicionais perderam paulatinamente sua função social porque pararam de atender as demandas espirituais do seu povo. Muitos ficam choramingando contra a pós-modernidade, mas o caso é que a igreja recusa-se a falar a língua e a linguagem de seu povo, cultiva em seu meio uma casta de sacerdotes inúteis e ainda preocupam mais com seus prédios do que com as vidas. Essa igreja merece acabar...
            O Brasil vai passar por esse mesmo fenômeno se a igreja cristã não reorganizar suas prioridades. A primeira prioridade é a educação religiosa, a qual não tem sido feita a contento. Milhares de pessoas frequentam os cultos, mas não sabem ler uma Bíblia, não sabem as doutrinas básicas das igrejas que frequentam não saber viver e nem mesmos exercer seus direitos de cidadão. Segundo prioridade, é a reorientação do processo de formação dos pastores e obreiros, é necessário um maior número de pessoas, principalmente pastores de tempo parcial, que tenham capacidade de fazer o trabalho de pastoreio e não de arrecadação financeira. Terceiro ponto, a dinâmica doutrinaria precisa caminha para discussões relativas à responsabilidade, autonomia e liberdade, de modo que cada cristão seja sacerdote, no sentido de levar Deus aos outros e viver em Deus.
            Observação importante é que ninguém lê em Apocalipse que no reino de Deus escatológico não haverá mais templo. O fim dos templos é algo bom, sem templo o povo de Deus vai para as ruas, praças e casas, de onde alias, nunca deveria ter saído...


[1] Jorge Barro, José Comblin e outros
[2] Rick Warren, Edir Macedo, Mega Churchs…

domingo, 16 de junho de 2013

O íntimo e o social: relações familiares de pessoas transgêneras

O íntimo e o social: relações familiares de pessoas transgêneras:
Texto de Ludmila Pizarro*
A família é uma célula social. Nela aprendemos tudo que a sociedade julga importante, desde o que comer, como nos comportar, nos vestir, o que dizer em cada ocasião, até nossos valores, a noção de certo ou errado e, fundamentalmente, o que é amor. Através das relações com os nossos familiares identificamos e sedimentamos nosso lugar no mundo. As regras sociais, por isso mesmo, transformam-se em elementos onipresentes, muitas vezes opressores, no convívio com a família.
Luds (Ludymilla Santiago e Ludmila Pizarro) durante a entrevista
Ludymilla Santiago e Ludmila Pizarro durante a entrevista
Esse é um quadro comum à maioria de nós. Algumas pessoas, entretanto, apresentam comportamentos não condizentes com as expectativas familiares, na grande maioria das vezes, ligadas a padrões sociais reducionistas de normalidade. Entre essas pessoas estão as transgêneras.
Coerente com um entendimento interseccional e solidário de feminismo, iniciamos um debate de como formar famílias mais inclusivas e acolhedoras frente à diversidade de gênero. Para isso, convidamos algumas mulheres transgêneras a relatar suas relações familiares. Como não poderia deixar de ser, esse texto é dedicado a elas, que se dispuseram a refletir, junto conosco, sobre suas relações com mães, pais, irmãos, irmãs, filh@s, net@s e parceir@s. São elas: Daniela Andrade, Inês Brandt (nome fictício), Letícia Lanz e Ludymilla Santiago. A elas nossos agradecimentos.
Para início de conversa, a formação familiar 
Através das conversas com nossas entrevistadas, fica claro que a estrutura da família nos moldes atuais rechaça a transgeneridade. Para Inês Brandt, assim que a expectativa da família recai sobre aquel@ filh@ e não é atendida, um elo se rompe. “Ao nascer, já recebemos uma série de prerrogativas às quais estaremos todos ‘condenados’ a atender. Sendo trans* nós revertemos essa roda e somos pessoas estranhas, importando pouco quantas coisas boas nós quisemos fazer pela família”, afirma.
Letícia Lanz, presidenta da ABRAT, concorda com essa dificuldade, como se a condição transgênera retirasse do indivíduo seu direito a ter uma família. Daniela Andrade completa, “somos vist@s como pessoas doentes pela medicina e aos doentes não é concedido o direito de formar uma família, lembrando que outras áreas do saber, como as ciências jurídicas, pautam-se, de modo geral, sobre essa concepção para, por exemplo, nos negar o direito de adotarmos uma criança”. Segundo Letícia, o próprio Sistema Único de Saúde perpetua essa visão, já que recomenda que as pessoas trans* que passam pelo processo de transgenitalização devem “mudar de cidade e começar vida nova”, negando assim sua “verdade histórica” e ocultando o passado.
Daniela Andrade
Daniela Andrade
Além da patologização, Ludymilla Santiago aponta a objetificação sexual do indivíduo trans* como outro problema que o afasta do padrão familiar tradicional. Daniela Andrade ressalta mais esse preconceito e diz que “não somos vistos nem como homens, nem como mulheres, outrossim, minotauros: metade gente, metade animal. De forma que cerca-se de preconceitos todos os relacionamentos das pessoas trans*, vistas na maior parte das vezes de forma fetichista”.
Filhos, melhor não tê-los? 
Entre as entrevistadas, apenas Letícia Lanz tem filhos. Aos 60 anos, Letícia tem três filh@s e dois net@s e, felizmente, consegue manter uma boa relação com eles. “Nossa relação é maravilhosa. Sinto total aceitação e respeito por parte deles da minha condição transgênera”. Mas esse quadro não é o mais comum. Ludymilla Santiago assume que existe o desejo de ser mãe, mas as condições para isso são desfavoráveis. Os receios são diversos: a falta de estrutura social e financeira, o histórico de violência doméstica da família, o preconceito que a criança poderia enfrentar. “Eu não penso só em mim, eu penso no que essa criança teria que enfrentar por ser minha filha ou filho” conclui. Daniela Andrade também pondera: “pretendo antes de pensar em filhos, resolver a minha vida que ainda não pode se dizer dignificada”.
A transição e a ruptura
Os conflitos entre a estrutura familiar e a “expressão de gênero ‘transgressiva’” (como diz Letícia Lanz), se acirram durante a transição. A partir desse processo, a identidade trans* não pode mais ser negada ou ignorada. É, portanto, o momento em que as famílias normalmente definem pelo acolhimento, ou não, da condição trans* de um de seus membros. Na fala das entrevistadas uma constante é o amor que fica. Inês Brandt ao falar de seus pais, afirma que tem “profunda admiração por eles, ainda que não aceitem minha transição. Estamos em fase de ‘negociação’. Sou independente financeiramente, mas não gostaria de cortar o contato por causa disso, principalmente porque desejo cuidar deles em um futuro próximo”. Daniela, também se declara: “eu os amo muito”, mas reconhece as dificuldades. “Saí de casa, pois nunca conseguiram me aceitar como alguém que transgredia as questões de gênero. (…) Tentaram a todo custo impor-me que eu deveria negar todos meus comportamentos vistos como naturais por mim, em benefício do que a sociedade esperava”. O corte no relacionamento muitas vezes é inevitável. Ludymilla Santiago mora sozinha há quatro anos e está há sete meses sem qualquer contato com a mãe, irmãs e sobrinhos. Afastou-se por entender que também merecia respeito. “Cansei de respeitar os outros e não ser respeitada. Ninguém entende, mas eu tenho o meu direito de ser quem sou. Não preciso de aceitação, mas quero respeito. Não vou mais engolir”, completa.
O resgate do afeto
A ruptura, no entanto, nem sempre é necessária. Letícia Lanz consegue, hoje, manter um relacionamento familiar harmonioso e um casamento de 37 anos. “Particularmente, após ter assumido inteiramente a condição de trans*, tenho lutado muito para conservar a minha família e a minha relação com a minha esposa, (…) sem falar na manutenção do meu papel de pai, o respeito e admiração dos filhos”, afirma a presidenta da ABRAT.
As dificuldades também são reconhecidas por Letícia. “É raríssimo uma pessoa transgênera poder contar com o apoio da sua família durante seu processo de transição”, afirma. E explica que para conseguir o êxito é necessário redefinir a estrutura familiar, encontrar novos espaços de convivência, novas possibilidades de separar a expressão de gênero dos papeis de gênero exigidos dentro da família. “Mas hoje conseguimos lidar perfeitamente com isso. O pai e a mulher transgênera que eu sou conseguem manter bem os seus respectivos espaços, inclusive naqueles aspectos em que esses espaços se superpõem”, conclui.
Daniela Andrade também assume que em sua vida, ainda existe espaço para a convivência familiar. “Passei a ter um relacionamento mais afetuoso com minha mãe, que inclusive liga para mim dizendo que tem saudade, vez ou outra. Talvez isso tenha se dado por conta de eu ter sido a única (d@s três filh@s que ela tem) que abandonou a vivência com os demais e foi morar sozinha”.
Outra estratégia, encontrada por Ludymilla Santiago, é construir relações de apoio e solidariedade. “Meus amigos se tornaram a minha família, por afinidade”. Inês Brandt também valoriza essa rede de apoio. “Encontrei pessoas maravilhosas, trans* ou não. Elas foram fundamentais na minha nova formação”.
As expectativas por uma família (e um mundo) melhor
“Toda grande mudança começa com pequenos gestos” disse Letícia Lanz ao avaliar ainiciativa de profissionais de educação infantil, em países europeus, de diminuir as condutas baseadas no gênero das crianças. “Isso pode impactar na vida de todas as pessoas. Para as pessoas não transgêneras, de escolher livremente e entender a escolha alheia. Para as pessoas transgêneras, entender que isso é natural – ou até não pensar sobre isso, que é o privilégio das pessoas cis1”, afirma Inês Brandt. Ou, como colocado por Ludymilla, permitir “o entendimento que a sociedade não pode tentar falar por você o que você é”.
Essa parece ser uma das principais demandas das entrevistadas, tanto em relação à família como em relação à própria sociedade: mudar a forma de “compreensão social do gênero”, abandonar o binarismo simplista dos gêneros e buscar a “extinção dessa forma de categorizar e hierarquizar os seres humanos que se tornou absolutamente supérflua e dispensável no mundo contemporâneo” segundo Letícia Lanz. Daniela Andrade ressalta, ainda, o caráter violento dessa divisão, afirmando que “a medida que estereótipos de gênero forem caindo por terra, as pessoas libertar-se-ão do que eu considero a grande violência, que é o próprio gênero tal e qual está concebido atualmente dentro da sociedade”.
Além de mudanças políticas, a família está sujeita a verdadeiras revoluções através da empatia e do afeto. Inês Brandt dá a dica: “para ser uma pessoa cuidadora, basta amor. Incondicional. Devemos nos despir dessas expectativas, principalmente porque o filho que decepcionou seu cuidador pode surpreender”.
A família pode e deve proporcionar o apoio e a segurança necessários, como nesse caso. Ou como descreveu Daniela Andrade, “A família deveria ser a célula capaz de se dispor a entender e amar a pessoa trans* antes de qualquer identificação. Deveria ser o apoio e o porto-seguro para onde essas pessoas poderiam se voltar quando todo o mundo desabasse sobre suas costas: pois sim, ser trans* no Brasil é carregar o mundo desabando cotidianamente sobre nós”.
Ludymilla Santiago reconhece que “muitas vezes é necessário passar por cima de convicções, religiosidade, ou moral para entender e para respeitar a pessoa transgênera”. Porém concordamos com Letícia Lanz quando ela diz que “é essencial a gente saber que quem a gente mais ama nos compreende, nos aceita, nos respeita e nos ama COMO A GENTE É”.
Percebe-se no Brasil uma grande ausência de associações que ofereçam apoio à comunidade transgênera e aos seus familiares. Nossas entrevistadas, entretanto, citaram a Anav Trans de Brasília, o Projeto Purpurina em São Paulo e a ABRAT com sede em Curitiba.
*Com o apoio mais que perfeito de Amanda Vieira, Carolina Pombo, Cecília Santos e Sharon Caleffi. Também agradeço à Jaqueline de Jesus que me apresentou à Ludymilla Santiago.
1 – Uma pessoa cis (de cisgênero), nesse artigo, é aquela que se identifica com o gênero (masculino ou feminino) que lhe foi designado ao nascer.
Ludmila Pizarro é jornalista, apaixonada por livros e mãe da Teresa de quase 4 anos. Escreve no blog Com o pé na estrada.


vi no Blogueiras Feministas...

“Duas no pé e uma na bunda”: da participação Terena na guerra entre o Paraguai e Tríplice Aliança à luta pela ampliação dos limites da Terra Indígena Buriti

“Duas no pé e uma na bunda”: da participação Terena na guerra entre o Paraguai e Tríplice Aliança à luta pela ampliação dos limites da Terra Indígena Buriti:
Terena que lutaram na Guerra do Paraguai. Acervo Comissão Rondon s/d.
Terena que lutaram na Guerra do Paraguai. Acervo Comissão Rondon s/d.
Por Jorge Eremites de Oliveira(1) & Levi Marques Pereira(1)
A guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (1864-1870), conhecida no Brasil como Guerra do Paraguai, e no Paraguai como Guerra Grande, Guerra del 70 e Guerra de la Triple Alianza, tem sido apontada como o mais sangrento conflito bélico das Américas. Esse evento também é apontado como um divisor de águas na história platina, não apenas na trajetória dos estados-nações, mas também no transcurso histórico e sociocultural de certos povos indígenas (Guató, Kadiwéu, Kaiowá, Ñandeva, Payaguá, Terena e outros).
Apesar da magnitude do evento, existem poucos estudos apurados sobre a participação indígena nessa luta armada, sobretudo no que se refere aos contatos e às mudanças socioculturais que a partir daí se processaram nos grupos étnicos direta ou indiretamente envolvidos na guerra. Sabe-se, todavia, que muitos indígenas atuaram diretamente no conflito. No Paraguai, por exemplo, muitos Payaguá foram somados às tropas de Solano Lopes; no Brasil, por sua vez, indígenas pertencentes aos grupos étnicos Guató, Kadiwéu, Kinikinau e Terena apoiaram o exército imperial na luta contra as tropas invasoras no sul de Mato Grosso. No pós-guerra, porém, territórios indígenas foram “objetos

de cobiça e exploração” por parte de novas frentes ocupação das sociedades nacionais, conforme Bartomeu Melià(2) avaliou para a história dos Kaiowá, Mbyá e Ñandeva.
Neste sentido, com o objetivo de contribuir para um maior entendimento sobre o assunto, neste trabalho analisamos, de maneira resumida, a participação terena na guerra, suas conseqüências nos processos de desterritorialização e (re) territorialização do grupo e suas significações no âmbito do movimento étnico-social pela ampliação dos limites da Terra Indígena Buriti, localizada em Sidrolândia e Dois Irmãos do Buriti, Mato Grosso do

Sul(3). Os estudos apresentados fazem parte de uma perícia produzida para a Justiça Federal no Estado (Autos n° 2001.60.00.003866-3, 3ª Vara da 1ª Subseção Judiciária de Campo Grande), para a qual foram aplicados procedimentos comuns na antropologia, como o registro e análise de histórias de vida e memórias genealógicas, acrescidas do estudo de fontes textuais e da literatura etnológica, além de pesquisa etnoarqueológica(4). Trata-se de um trabalho que proporcionou, no campo teórico e empírico, a aplicação concatenada de métodos e técnicas recorridas em áreas afins como a antropologia, arqueologia e história.

Sobre os Terena, eles constituem um grupo étnico descendente dos antigos Guaná-Txané das regiões do Chaco e Pantanal, cuja língua está filiada à família linguística aruák, assim como também é o caso dos Laiana e Kinikinau. Até fins do século XIX, os Guaná-Txané estavam organizados e se distinguiam em vários grupos étnicos, segundo resumiu Gilberto Azanha: “Terena (ou Etelenoé), Echoaladi, Quiniquinau (Equiniquinau) e Laiana. Os índios mais velhos reconhecem ainda hoje os termos Etelenoé, Laiana e Quiniquinau, e distinguem, quando inquiridos, os descendentes dos ‘laiana’ ou ‘quiniquinau’. Mas para o público externo, todos atualmente se reconhecem como ‘Terena’”(5). A emergência de uma identidade terena abrangente a vários grupos étnicos genericamente chamados de Guaná-Txané, como os Laiana e Kinikinau, já estava em processo na época das pesquisas de Fernando Altenfelder Silva(6) e Roberto Cardoso de Oliveira(7).
No período colonial, séculos XVI, XVII e XVIII, grupos Guaná-Txané estavam estabelecidos nas regiões chaquenha e pantaneira, denominada na língua terena de Êxiva, as quais incluem partes dos atuais territórios do Brasil, Paraguai e talvez da Bolívia(8). No Brasil, a região Êxiva abrangia, sobretudo, áreas que a partir da década de 1810 foram denominadas pelos monçoeiros de Pantanal, em especial a porção meridional que vai da altura de Corumbá e Ladário até o rio Apa, em Porto Murtinho, atual Mato Grosso do Sul(9).
Desde o século XVIII, quando Portugal expandiu seus domínios em direção ao Pantanal, com vistas à exploração de ouro e posse de importantes vias fluviais, os Guaná-Txané mantiveram suas aldeias nas proximidades de povoados e fortificações militares lusobrasileiros(10). Essas aldeias não estavam isoladas entre si, mas ligadas por redes de

relações sociais dentro de um amplo território, de acordo com as feições próprias de seu sistema social, sobre o qual dispomos de poucos registros históricos e etnográficos. A presença dessas aldeias em pontos estratégicos para a Colônia, e depois para o Império, fazia parte de uma geopolítica maior com o propósito de usar índios como muralhas do sertão e guardiões das fronteiras.
Na segunda metade do século XIX, período em que foram produzidos vários relatos de viajantes e documentos oficiais da Diretória Geral de Índios, havia uma aldeia kinikinau na localidade de Mato Grande, atual distrito de Albuquerque, em Corumbá, e outras aldeias kinikinau, laiana e terena nas imediações do Presídio de Miranda. Em todos esses lugares grupos linguisticamente aruák comercializavam, desde tempos coloniais, alimentos diversos,

tecidos, redes e outros produtos em estabelecimentos oficiais da Colônia, e depois do Império, por vezes assim o fazendo para a manutenção de relações de aliança com os lusobrasileiros.
Em Mato Grande, por exemplo, ainda na segunda metade do século XIX, foi fundada a Missão de Nossa Senhora do Bom Conselho, na qual padres capuchinhos iniciaram trabalho de catequese entre os Kinikinau e entre famílias de outros grupos étnicos ali aldeados, a exemplo do Guató. Em 1864, com a iminência da invasão paraguaia ao sul de Mato Grosso, o frei Mariano de Bagnaia e algumas famílias indígenas deixaram a missão e se refugiaram na banda mais oriental do Pantanal, às margens do rio Miranda. Eles atravessaram o rio Paraguai, talvez nas imediações de Porto Esperança, localidade por onde Claude Lévi-Strauss passou na década de 1930, rumo ao território kadiwéu(110, e se refugiaram em Miranda, território ocupado pelos Guaná-Txané desde tempos imemoriais(12).

Dessa forma, os antigos Kinikinau, Laiana e Terena, atualmente se auto-identificando como Terena para a exterioridade, atuaram como atores históricos importantes na expansão e consolidação de um grande território à Coroa de Portugal e, posteriormente, ao Império do Brasil. Na opinião de Kalervo Oberg(13), os antigos Guaná-Txané chegaram a manter uma espécie de simbiose com o exército brasileiro. Isso teria ocorrido pelo fato deles possuírem, naqueles tempos, uma organização militar e clânica favorável a contatos dessa natureza.
A partir de fins de 1864, com a guerra oficialmente iniciada por conta da invasão paraguaia ao sul de Mato Grosso, os Guaná-Txané passaram por uma abrupta mudança. Na época havia 10 aldeias em Miranda, as quais perfaziam cerca de 4.000 pessoas, segundo registrou Alfredo d’Escranoglle Taunay, principal cronista da guerra e um dos primeiros etnógrafos, por assim dizer, a descrever esses grupos linguisticamente aruák(14). A presença de tropas paraguaias na região forçou uma diáspora ou dispersão territorial de muitas famílias indígenas ali estabelecidas. Uma das rotas de fuga foi em direção a Serra de Maracaju, fato este também descrito por Taunay. Em suas palavras: “Dentro em breve nos morros se concentravam todos os dispersos da zona de Miranda. Em fins de 1865, ali se achavam em lugar seguro, onde o inimigo não se aventurava a aparecer”(15). Segundo o autor, essa região serrana funcionou como um “seguro refúgio à perseguição paraguaia”(16).
No entanto, ao contrário do que muitos antropólogos e historiadores propuseram, desde antes da guerra alguns troncos já estavam assentados e haviam feito fundações na Serra de Maracaju, inclusive na região de Buriti(17). As categorias nativas terena de troncos e fundações foram por nós identificadas e etnograficamente descritas no laudo pericial mencionado anteriormente. No entanto, até o momento essas categorias não haviam chamado a atenção de muitos antropólogos, talvez pelo fato deles estarem excessivamente preocupados com a descrição e análise dos processos aculturativos.
De acordo com a memória genealógica do grupo, o início da ocupação terena em Buriti não decorreu da guerra, mas foi intensificada a partir dela. Por volta da década de 1850, no mínimo, alguns troncos estavam estabelecidos na região, provenientes da zona pantaneira. Na época, grupos Guarani e Ofayé-Xavante também estavam estabelecidos nas proximidades, o que configura essa área serrana como uma região multi-étnica. Foi ali que tempos depois eles receberam outros troncos vindos de Miranda, Nioaque e de outras localidades, os quais encontraram em Buriti um lugar seguro para viver.
A respeito dos troncos e fundações, algumas explicações devem ser apresentadas. Para os Terena de Buriti, tronco familiar tem sentido de grupo de parentes articulado em torno da figura de um líder de expressão, geralmente o mais velho, chamado de tronco, quer dizer, o articulador de um número variável de famílias nucleares a partir de laços de consanguinidade, afinidade e aliança política. Um tronco pode ser pensado como o equivalente terena da parentela bilateral, tal como é descrita na etnologia. A ideia de aldeia tem o sentido de uma rede dinâmica de relações sociais, histórica e espacialmente definidas dentro de um mesmo território, geralmente se referindo à noção de lugar ocupado por um ou mais troncos familiares. Dessa maneira, a aldeia normalmente aparece como uma configuração de troncos, sempre contando com um articulador principal, cuja liderança transcende o campo gravitacional formado pelas famílias pertencentes ao seu tronco. Por vezes, indivíduos de um mesmo tronco se referem à área de seus antigos assentamentos como sendo uma aldeia. Na realidade, todos os troncos sempre estiveram inseridos em uma rede de alianças que de fato constitui, aí sim, uma aldeia em seu sentido mais sociológico.
Isso porque uma aldeia pressupõe autonomia em termos matrimonial, religiosa e política, por exemplo, algo que é praticamente impossível de ocorrer dentro de um único tronco, pois a densidade de relações de parentesco consanguíneo próximo impede o enlace matrimonial e restringe as possibilidades de aliança.
No âmbito da arqueologia, a área ocupada por um ou mais troncos familiares, chamada de aldeia, constitui uma unidade de ocupação, na qual predominam as relações de reciprocidade em termos econômicos. Cada antiga unidade familiar pode corresponder a um ou vários sítios arqueológicos, cuja implantação na paisagem está ligada a uma lógica particular de sistema de assentamentos e parentesco, inclusive com a ocorrência de cemitérios e outros locais de valor simbólico, como morros e córregos, cada qual com seu respectivo dono.
Quando um grupo de famílias nucleares, motivado por um líder ascendente, decide fundar um novo tronco, os Terena de Buriti denominam esta situação de fundação. Daí a explicação para outro termo comum entre eles, o de troncos fundadores.
Apesar de muitas famílias terem deixado Miranda quando a região esteve dominada pelos paraguaios, entre 1864 e 1866, os antigos Guaná-Txané chegaram a impor resistência armada contra as tropas invasoras e em defesa de seus territórios. As armas utilizadas na resistência foram as que os militares brasileiros deixaram em Miranda quando dali fugiram diante da invasão das tropas inimigas. Quase que ao mesmo tempo, os Terena deram apoio às tropas imperiais em momentos de dificuldade, como a fome enfrentada pelos soldados. Os registros mais importantes e detalhados sobre a participação deles nesse conflito bélico platino seguem sendo aqueles produzidos por Taunay.
Com o término da guerra, muitas famílias permaneceram na Serra de Maracaju e na região consolidaram uma ampla rede de relações sociais entre si e com as famílias que lá estavam estabelecidas antes delas. Posteriormente, em especial com o advento da República (1889), várias famílias passaram a enfrentar uma situação conhecida como cativeiro e, posteriormente, uma outra mencionada como camaradagem. Ambas são formas de exploração do trabalho indígena em fazendas de gado, geralmente relacionada a uma dependência que lembra um tipo de regime de servidão ou semi-escravidão.
Ainda nos primeiros momentos da República, o governo central transferiu terras indígenas não tituladas para o Estado de Mato Grosso, incluindo extensões do território terena na Serra de Maracaju. Este, por sua vez, apoderando-se de vastas áreas e desconsiderando a legislação em vigor, em especial a Lei de Terras de 1850 (Lei 601), declarou-as como terras devolutas e depois as repassou a terceiros(18). Esses terceiros são apontados como os que promoveram processo de esbulho contra comunidades terena e, para isso, contaram com a participação de agentes do próprio Estado.
Na época, a população terena ocupava vários pontos do território situado a partir das imediações de Miranda até os contrafortes da Serra de Maracaju, por onde estavam distribuídos vários de seus troncos, ali estabelecidos ao longo dos principais cursos d’água e de acordo com as relações de alianças que configuravam suas aldeias. A transferência das terras ocupadas pelos Terena para particulares resultou de imediato em um processo de desterritorialização de muitos troncos, alijados de suas fundações e dispersos como trabalhadores volantes pelas fazendas. Posteriormente, eles passaram por um processo de (re) territorialização nas reservas demarcadas pelo SPI (Serviço de Proteção aos Índios).
Dessa situação teve origem grande parte da estrutura fundiária do atual Estado de Mato Grosso do Sul, motivo de muitos conflitos fundiários entre índios e fazendeiros.
Nas décadas de 1920 e 1930, o SPI implementou uma política oficial de aldeamento e reuniu, em uma única área, troncos assentados em vários pontos da Serra de Maracaju, juntamente com aqueles que há muito estavam assentados em Buriti. Este processo oficial de aldeamento foi feito sem levar em conta os territórios tradicionais terena e serviu para dar espaço a novas frentes econômicas de ocupação neobrasileira. Com essa política ficou assegurada aos índios uma área de cerca de 2.000 ha, havendo, porém, uma drástica redução do tamanho das terras tradicionalmente ocupadas por eles. Esse processo de espoliação de terras indígenas foi promovido com o apoio de um funcionário do SPI, o chefe do Posto Indígena Buriti, Alexandre Honorato Rodrigues, e da própria captura de Aquidauana, força policial conhecida pela perseguição a grupos de bandidos, como o bando dos baianinhos. Na ocasião, alguns troncos tiveram até 24 horas para deixarem suas casas, não tendo tempo sequer de fazerem a colheita das roças. Isso causou a perda de sementes de variedades tradicionais de plantas domesticadas. Além disso, nesse período epidemias como a de febre amarela causaram depopulação entre os Terena da região.
Este é um assunto que de tão polêmico que é já foi parar nos tribunais, visto que envolve uma antiga reivindicação pela ampliação dos limites da Terra Indígena Buriti, de 2.090 para 17.200 hectares, cuja sentença proferida na Justiça Federal em Mato Grosso do Sul, no ano de 2004, foi desfavorável à comunidade terena. Hoje em dia, o processo tramita em instância superior da Justiça Federal.
No segundo semestre de 2003, quando da realização dos estudos periciais, um importante tronco de 85 anos, o ex-cacique Armando Gabriel, ao analisar a situação sócio-histórica vivida pelo grupo, argumentou que os Terena receberam do governo imperial apenas três botinas por lutarem ao lado do exército brasileiro na guerra contra o Paraguai: “duas no pé e uma na bunda”. Essa avaliação remete à idéia de reciprocidade negativa: os Terena participaram da resistência neobrasileira contra a ocupação paraguaia no sul do antigo Mato Grosso e no pós-guerra, contudo, eles receberam em contra-partida, por parte do Estado Nacional, o espólio de suas terras. Por este motivo os Terena passaram a enfrentar um processo de desterritorialização e fragmentação de seu território tradicional diante das frentes de expansão econômica da sociedade nacional. Este fato foi seguido por um processo de reorganização de sua cultura em uma pequena parte de suas terras, até chegarem, enfim, aos dias de hoje, com o processo de retomada e disputa judicial pela posse de uma área maior do território que ocupavam até a primeira metade do século XX.
A guerra entre o Paraguai e Tríplice Aliança, portanto, segue sendo vista como um divisor de águas na história terena e faz parte de uma memória coletiva. Essa memória, por ser dinâmica, vem sendo (re)significada diante de novas situações sócio-históricas, nas quais se insere o movimento étnico-social pela retomada de parte do território espoliado. Essa é uma reivindicação que o grupo percebe como legítima e de fundamental importância

para sua reprodução física e cultural e para o futuro das novas gerações terena.


1 Laboratório de Arqueologia, Etnoistória e Etnologia, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade

Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Dourados, Caixa Postal 322, Dourados-MS (Brasil), CEP 79825-

070. E-mails: eremites@cpdo.ufms.br e lpereira@nin.ufms.br. Fones: (67) 411-3645, 9952-5751 e 9972-4830.
2 Ver, p. ex., MELIÀ, B. 2004. El pueblo Guaraní: unidad y fragmentos. Tellus, Campo Grande, 4(6):151-162.
3 Sobre a ideia de movimento étnico-social, ver PEREIRA, L. M. 2003. O movimento étnico-social pela

demarcação das terras guarani em MS. Tellus, Campo Grande, 3(4):137-145.
4 EREMITES DE OLIVEIRA, J. & PEREIRA, L. M. 2003. Perícia antropológica, arqueológica e histórica da área reivindicada pelos Terena para a ampliação dos limites da Terra Indígena Buriti, municípios de Sidrolândia e Dois Irmãos do Buriti, Mato Grosso do Sul, Brasil. Dourados. (não publicado) (Autos n° 2001.60.00.0038 66-3, 3ª Vara da 1ª Subseção Judiciária de Campo Grande)
5 AZANHA, G. 2004. As terras indígenas Terena no Mato Grosso do Sul. Brasília, Centro de Trabalho Indigenista. (não publicado)
6 ALTENFELDER SILVA, F. 1949. Mudança cultural dos Terêna. Revista do Museu Paulista, Nova Série, v.3; ______. 1976. Religião terena. In SCHADEN, E. Leituras de Etnologia Brasileira. São Paulo, Companhia Editora Nacional, pp.268-276.
7 (1) CARDOSO DE OLIVEIRA, R. 1968. Urbanização e tribalismo: a integração dos índios Terena numa sociedade de classes. Rio de Janeiro, Zahar; (2) ________. 1976. Do índio ao bugre: o processo de assimilação dos Terena. 2ª ed. revista. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves; (3) ________. 2002. Os diários e suas margens: viagem aos territórios Terêna e Tükúna. Brasília, EdUnB.
8 Ver BITTENCOURT, C. M. & LADEIRA, M. E. 2000. A história do povo terena. Brasília, MEC.
9 Sobre o que é e quais as diferenças gerais entre as regiões do Chaco e do Pantanal, ver (1) EREMITES DE OLIVEIRA, J. & PEREIRA, L. M. Op cit.; (2) EREMITES DE OLIVEIRA, J. 2003. Origens do povoamento indígena do Pantanal: aportes para uma nova revisão arqueológica. Pós-História, Assis, 11:159-184; (3) ______. 2004. Arqueologia das sociedades indígenas no Pantanal. Campo Grande, Oeste.
10 O conceito de aldeia é uma categoria forjada em um contexto sócio-histórico colonial, o qual merece atenção quando se analisam fontes textuais sobre a ocupação territorial dos diversos grupos étnicos hoje reconhecidos como terena. Muitos documentos atestam que as ocupações terena não se restringiam, pois, às grandes aldeias situadas nas proximidades de fortificações militares e missões religiosas. Entretanto, uma leitura mais atenta dessas fontes revela que um grande esforço era despendido para reunir essa população em torno dessas áreas, com o objetivo de aldear esses índios e colocá-los a serviço do esforço colonial.
11 LÉVI-STRAUSS, C. 1998. Tristes trópicos. Trad. de R. F. d’Aguiar. São Paulo, Companhia das Letras.
12 Ver SCHUCH, M. E. J. 1988. Missões capuchinhas entre os Guaná sul-mato-grossenses. Estudos Leopoldenses, São Leopoldo, 30:89-131.
13 OBERG, K. 1948. Terena social organization and law. American Anthropologist, Menasha, 50(2):283-291.
14 TAUNAY, A. d’E. 1940. Entre nossos índios Chanés, Terenas, Kinikinaus, Laianas, Guatós, Guaycurús, Caingangs. São Paulo, Companhia Melhoramentos de S. Paulo, pp.19-20.
15 TAUNAY, A. d’E. Op cit., p.37.
16 Idem, p.33.
17 Esta tese contraria muitos trabalhos, tanto os considerados como clássicos da etnologia terena, citados anteriormente, como outros estudos produzidos posteriormente.
18 Ver AZANHA, G. 2001. A Lei de Terras de 1850 e as terras dos índios… Brasília, Centro de Trabalho Indigenista. (não publicado)
19 Disponível em http://www.ifch.unicamp.br/ihb/Textos/JEOliveira-LMP.pdf.
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Nota: foi dos mesmos autores o laudo judicial referente à Terra Indígena Buriti. Publicamos o link para ele no dia 1º de junho, em matéria curta sobre o assassinato de Oziel Gabriel, que pode ser acessada clicando no título TI Buriti: Laudo judicial completo pode ser baixado. E Jorge Eremites de Oliveira, um dos autores, garante: “Oziel foi morto em terra indígena”. (Tania Pacheco)


vi no racismo ambiental...

sexta-feira, 14 de junho de 2013

CLAUDIO ULPIANO: A EXPRESSÃO DE SINGULARIDADES E ACONTECIMENTOS « Centro de Estudos Claudio Ulpiano





Foi em uma belíssima aula de Claudio Ulpiano, há mais de 25 anos, que ouvi falar, pela primeira vez, o nome do poeta Manoel de Barros. Era um poeta sendo citado em uma aula que era um poema.  Deleuze e Guattari afirmam que faz parte da compreensão de um conceito filosófico a sua compreensão não-conceitual: os conceitos não remetem apenas a outros conceitos, “os conceitos remetem eles mesmos a uma compreensão não-conceitual. (…) O não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia, e significa que a filosofia não pode contentar-se em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual, mas que ela se endereça também, em sua essência, aos não-filósofos” (O que é a filosofia?, Editora 34, p. 57). Para compreendermos adequadamente toda a potência que um conceito filosófico possui, é necessário que saibamos ter igualmente uma compreensão não-conceitual do conceito. Esta compreensão não-conceitual implica que saibamos compreendê-lo também politicamente, etologicamente, clinicamente, eticamente, enfim, poeticamente. Esta compreensão poética, heterogenética, não é exterior ao conceito, uma vez que faz parte da compreensão do conceito o seu devir poético, ao mesmo tempo em que o poético devém filosófico: era esse agenciamento conceito-poesia que as aulas de Claudio generosamente nos ofereciam, e que faziam de Claudio nosso intercessor. Nesse devir que vai do conceito à poesia, e da poesia ao conceito, o pensamento e o corpo se  mostram  como as duas metades de uma  vida que é Afeto.
Acerca do seu precioso livro que agora lemos, Gilles Deleuze: a Grande Aventura do Pensamento, o próprio Claudio se refere ao seu trabalho “como se fosse um poema”. Citamos Manoel de Barros porque é nele que podemos encontrar o seguinte verso: “O poeta é aquele que vai até à infância e volta”. E aquele que vai não é o mesmo que retorna, pois se opera no intervalo uma metamorfose, um devir, uma salut: a prática da inocência. O mesmo pode ser dito de um filósofo, como Claudio, que nos ensina que “a filosofia é a mais inocente das ocupações”. Nietzsche dizia que “só podemos destruir sendo criadores”. Destruição como crítica, criação como clínica. Crítica e clínica: as duas metades de um devir-criança.
Em um de seus últimos cursos ministrados, e publicado sob o título A coragem da verdade, Michel Foucault, que pouco se refere a Espinosa, cita o autor da Ética de uma forma que  revela a admiração que nutria por Espinosa, a despeito das poucas palavras escritas que lhe dedicou. Segundo Foucault, em Espinosa fazer filosofia é inseparável da produção de uma vida filosófica. Produzir um modo de vida filosófico, este é o principal desejo que tem na filosofia a sua causa eficiente. Em Espinosa, a vida filosófica não é uma vida à parte, ela é a vida mesma. Produzir uma vida filosófica requer não apenas amor à Verdade ou à Sabedoria, requer sobretudo coragem. E disto a própria vida de Espinosa dá o testemunho. A philia, como amizade ou amor à Sabedoria, nada é sem a coragem de viver filosoficamente esse amor, esse afeto. Decerto que não faltou amor à sabedoria em muitos filósofos, mas poucos foram além do amor, poucos exerceram esta coragem que a filosofia pede. Há uma dimensão clínica nessa coragem, pois toda cura começa na coragem. Coragem não exatamente para enfrentar a doença, mas coragem para viver de acordo com a saúde. E Claudio, como poucos, é o exemplo vivo de um filósofo brasileiro que resistiu com salut e coragem. Claudio viveu, desde sua Macaé, um modo de vida no qual não faltaram amor e amizade, mas estes foram potencializados pela coragem, coragem esta que a própria amizade e amor pedem, para que assim sejam potências do Afeto.
Segundo Deleuze (Nietzsche et la philosophie, p. 119), há um devir-verdade que não se opõe ao falso; o devir-verdade dá ao falso uma potência de criação que o liberta de ser o negativo da Verdade que não tem devir. O devir-verdade é a adequação do pensamento ao agir, e que faz da filosofia a mais necessária das práticas: a de ensinar pela conduta.
Falar ou escrever sobre Claudio Ulpiano nos põe, como diria Manoel de Barros, em “estado de rascunho”: um  “afloramento de falas” vem ocupar nossa voz. Somente como rascunho, anexatos, podemos conquistar alguma consistência, mas sem perder o infinito.  Falar sobre Claudio, só o podemos, deixando nascer em nós um sujeito coletivo de enunciação: poli-fonia – múltiplas vozes. Isto porque Claudio Ulpiano assinou seu nome para expressar singularidades e acontecimentos dos quais ele foi e é o criador. O nome de Claudio é a assinatura através da qual vemos paisagens, personagens, acontecimentos, afetos, experimentações, devires, beleza, sujeitos larvares, mundos por criar.
Segundo Espinosa (Deleuze, Spinoza: immortalité et éternité.Paris: Gallimard, 2001. 2 CDs), quando a morte leva uma criança, a morte leva a maior parte desta pequena existência, mas não leva tudo: algo da criança permanece. Isto nos mostra que o poder da morte não é absoluto. Se a criança viveu ao menos um dia de vida, a morte não tem poder para levar e apagar este um dia. A morte, na verdade, levará os dois anos da criança, ou os seus 10 anos. Ou seja, a morte só pode levar o que não foi vida. Ela só pode apagar o que não existe ou existirá: os anos que a criança não viverá. A morte só tem poder onde reina cronos, e não onde há a instauração de aion. A morte é ausência, privação. Mesmo antes de ter nascido, a criança existiu, como essência, no desejo dos seus pais, como parte da essência destes. E esse desejo também a morte não pode apagar, assim como a escuridão não pode apagar a luz, dado que a escuridão é tão somente a ausência da luz. Por mais estranho que possa parecer, a morte não leva nada, pois ela vem do exterior de nossa essência, e apenas leva o que é exterior a esta. Para Espinosa, quanto mais potência uma essência possui, mais expansão ela é capaz de conquistar, reduzindo ao mínimo o poder de subtração da morte. Quem mais na vida se multiplica, e vida se multiplica com vida, menos subtraído pode ser por aquilo que não é vida.
Espinosa diz ainda que o homem que soube fazer de sua existência uma expressão da Vida, que é potência absoluta, deste homem a morte apagará a menor parte, pois a outra parte, a maior, não pode ser apagada a não ser apagando o universo inteiro. Por isso, essa menor parte que é levada/apagada em nada diminui aquele que no infinito aprendeu a se fazer inteiro. Inteiro não como algo que aumenta com os anos, e que envolve quantidades numéricas, pois se trata de se tornar inteiro como uma quantidade não numérica, múltipla, uma potência: um “quantum de vida”, como diz belamente Claudio. A maior parte de Claudio vive em nós como aquilo que nos aumenta a Vida.
No Prefácio que escreveu para o livro de Claudio, o Prof° Luiz Orlandi se refere a Claudio como  um signo-luz. Em suas aulas, víamos e ouvíamos esse signo-luz, e então tudo se clareava e compreendíamos por onde avançar e ir – pelos livros e, sobretudo, pela vida. Hoje esse brilho está também em seu livro, como o clarão de que fala Deleuze, como o relâmpago que canta Paulinho Moska.
No conto O livro de Areia, Borges nos relata o seguinte fato: um homem encontra um livro que porta um segredo (tomo de empréstimo essa palavra do Prof° Mário Bruno ao se referir a Claudio). O homem abre o livro e lê uma de suas páginas, e depois o fecha. Abrindo novamente o livro, ele tenta voltar à página lida, porém não a encontra. A cada vez que o livro se abre, uma página nova se mostra: o livro era uma Diferença que cada página singular repetia, diferencialmente. O livro possuía somente páginas por descobrir, nas quais acontecia um sentido sempre novo, de tal modo que a recognição nada tinha a fazer ali. O livro era um encontro, sempre: e cada encontro tornava o homem também diferente, como se lhe nascessem novos olhos. O homem tentou então achar o fim do livro, o seu término. Um novo paradoxo se mostrou: o livro não possuía última página, pois novas páginas emergiam da virtualidade da obra. O homem tentou encontrar a primeira página: esta também não podia ser achada, uma vez que novas páginas surgiam redesenhando o começo. O livro não contava histórias, apenas devires. Na verdade, o homem descobriu que o tal livro possuía tão somente páginas do meio, e estas eram infinitas. Infinitas não numericamente, mas infinitas em sentido, em potência de expressão. O livro somente possuía páginas do meio, e estas eram meio para experimentações com o espírito, mais do que com a letra. Era um livro infinito, tal como o inesgotável e belíssimo livro que o signo-luz Claudio escreveu.

Elton Luiz Leite de Souza

 Professor de Filosofia da Unirio
(discurso feito em ocasião do lançamento do livro Gilles Deleuze: A Grande Aventura do Pensamento em Macaé, em 4 de junho de 2013



acesse o site e conheça o trabalho deste filósofo...

quinta-feira, 13 de junho de 2013

O que vi nos acampamentos terenas…




            Nos últimos meses, o Mato Grosso do Sul tem passado por lutas e conflitos. Não que isso seja novidade, e não que isso fosse inesperado, mas que o conflito geralmente gera no cidadão comum confusão e opiniões contraditórias. A confusão é boa quando causa um movimento mental espiritual na busca de clareza e da estruturação de alguma ordem ao caos, ordenação das ideias e o vislumbramento de um caminho a seguir.
Gostaria, portanto de escrever sobre o que vi na minha visita ao acampamento dos índios Terena na região de Sidrolândia/Buriti no Mato Grosso do Sul, sobre o que percebi de sua luta, sobre seus rostos, suas expectativas e aproveitar para tecer alguns comentários. Que sejam as minhas impressões, mas que elas possam gerar a disposição mental no leitor para buscar mais informações a respeito do tema, antes de fechar os olhos para a questão.
            Quando saí de Campo Grande, pensei que encontraria um cenário de guerra, com pessoas armadas e agressivas como em outros espaços que já estive. Encontrei pessoas, homens, mulheres e crianças, em posição de guerra, esperando a resolução do processo. Não estavam em posição militar, não tinham armas a vista (se tinham eu não vi...), esperavam a hora do almoço simples, organizavam suas vidas, mas sempre olhando para a estrada. A guerra para eles era tomar posse fisicamente de um espaço, tornando-o seu território por sua presença.
            Percebi que eram pessoas que haviam saído de suas casas na esperança de conquistar aquilo que acreditam lhes pertencer. De fato, várias vez ouvi comentarem que os mais antigos contavam que haviam vivido naquela região, e que foram expulsos. Há de certa forma um discurso do retorno ao local de origem. Em nenhum momento foi referido algo religioso como argumento para a posse da terra, apenas que elas eram habitadas no período do pós-guerra e na época do Marechal Rondon, e depois foram sendo tomadas pela coalizão entre fazendeiros e governo local.
            Os relatos dos conflitos, da morte de Oziel Gabriel[1], das emboscadas, dos jagunços, dos enfrentamentos mostravam um pouco da coragem dessas pessoas. Quando narraram seus confrontos, falavam sobre enfrentar, sobre as façanhas de impedir a entrada na área e de sobreviverem a tiroteios, mas não ouvi nenhuma palavra sobre matar policial ou matar fazendeiro. Em outros movimentos, houve-se isso, e abandonando a hipocrisia da grande mídia, seria normal o surgimento destes discursos mais violentos.
            Todo movimento implica em violência, alias a violência física, tanto de uma parte quanto de outra, é precedida pela violência simbólica. A mídia considera o movimento como invasão, como roubo de propriedade alheia, mas curiosamente não se destaca os atos de violência perpetrados ao longo da história. É curioso como pouco se fala das consequências da guerra do Paraguai, a reordenação do território do sul do Mato Grosso, as lendas de violência, etc.
A perda de uma vida, além dos feridos é parte do alto preso do processo. É lógico que não são crianças, sabem os riscos que estavam correndo desde que saíram de suas casas, mas que mesmo assim sofrem, choram e lamentam suas perdas. É o custo existencial da busca por direitos e da busca por aquilo que consideram como justo e justiça.
            Em todos os quatro acampamentos que visitamos, fomos recebidos com orações. Sim, a maior parte destas pessoas são de origem evangélica, não poucos dos líderes são filhos de pastores ou parentes destes. Isso demonstra que um dos principais fatores que possibilitam a existência deste movimento de retomada é a escolarização, que de alguma forma propicia a cidadania. Historicamente, os evangélicos dentre os terenas tiveram melhores possibilidades de acesso a educação fundamental, e nas presentes gerações essa herança manifesta-se na busca por formação superior. Não que as igrejas evangélicas incentivem o movimento, mas que seu incentivo no sentido dos estudos gerou o efeito colateral da conscientização, como já sugeriria Paulo Freire. É pouco estatisticamente, mas rende muito em termos de transformação social.
            É interessante o quanto a cultura brasileira pode ser esquizofrênica. Reclama-se nos botequins ou cantinas de igreja, que o brasileiro é passivo, e deveria se inspirar nos argentinos que costumam ir as ruas protestar. Agora que alguns setores aprenderam a fazer isso, acusa-se os grupos que se manifestam de serem baderneiros, quem vai entender o povo?
            Não creio ser útil idealizar os terenas. São um povo com suas qualidades e defeitos, alias, são um grupo de cidadãos brasileiros normais, que estão na busca de vida melhor. Neste sentido, são exemplo para o restante da população que permanece passiva perante os problemas do dia a dia. Alias, grande parte da população não faz ideia dos problemas reais que lhes aflige, não podendo reagir contra aquilo e aqueles que lhes causam dor. Os terenas acreditam que a resolução de seus problemas virá com a posse da terra, eu diria que isso não resolverá tudo, mas ajudará o grupo em diversos aspectos.
E quanto aos demais cidadãos brasileiros? Quais as causa de seus problemas, suas dores e de sua pobreza? Identificada às causas, soluções poderão ser propostas e lutas devem ser travadas, novas lutas virão, mas é melhor sofrer lutando do que resignar.
Mudanças não virão de graça, pelo menos as mudanças positivas...



Conflitos em Sidrolândia, Terenas, Índios Terena, Guarda Nacional, Fathel, Luta pela Terra, Viagem,



Relatório Figueiredo revela que famílias tradicionais se apossaram de terras indígenas no MS

Relatório Figueiredo revela que famílias tradicionais se apossaram de terras indígenas no MS:
Depoimentos feitos em CPIs que funcionaram em 1955 e em 1962 indicavam que terras indígenas foram arrendas ou vendidas com o aval do Estado
Luciana Lima - Ig
O Relatório Figueiredo, produzido em 1967 e redescoberto recentemente, já descrevia detalhadamente os conflitos agrários em terras indígenas que atualmente são base da violência no campo registrada no Mato Grosso do Sul. O documento aponta que nas duas comissões parlamentares de inquérito, que funcionaram em 1955 e em 1963, terras indígenas eram arrendadas ou vendidas, com aval do Estado, responsável por emitir os títulos.
A primeira CPMI, em 1955, funcionou com o objetivo de anular a doação de terras feitas pelo governo do antigo Mato Grosso. A segunda, em 1962, tinha o objetivo de apurar irregularidades no extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Esse foi o contexto que motivou a expedição realizada pelo procurador Jader Figueiredo, que produziu o relato de 7 mil páginas que inclui o roubo de terras indígenas, tortura e extermínio de tribos inteiras no Brasil durante o período da ditadura militar.
“O que estamos vendo acontecer agora no Mato Grosso do Sul é reflexo do que foi feito pelo Estado sobre terras indígenas”, comentou o pesquisador Marcelo Zelic, coordenador do projeto Armazém Memória, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais. Foi Marcelo Zelic quem encontrou o Relatório Figueiredo no Museu do Índio, no Rio de Janeiro.
O documento, que se julgava ter sido destruído em um incêndio no Ministério da Agricultura, em junho de 1967, relata métodos cruéis de tortura praticados contra índios com o apoio do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão criado em 1910, quando várias frentes de expansão para o interior do País promoviam um verdadeiro massacre da população nativa que resistia ao chamado “avanço da civilização”. A informação de que o documento não havia sido destruído foi revelada em abril, pelo jornal O Estado de Minas.
Loteamento
Para Zelic, o relatório contém um conjunto probatório sobre a espoliação de terras no Mato Grosso do Sul. Além dos depoimentos das CPIs, o relatório detalha também como famílias que se tornaram tradicionais no campo se apossaram de terras indígenas.
No caso da Colônia Tereza Cristina, por exemplo, o Relatório Figueiredo contém um mapa da área desenhado pelo marechal Cândido Mariano da Silva Rondon no qual consta o nome das famílias que teriam ficado com cada pedaço de terra. Outro documento importante constante no relatório é o pedido feito pelo Estado do Mato Grosso em 1966 (portanto bem antes da divisão entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul), para explorar a área “para efeito de colonização estadual e aproveitamento de manancial energético”.
Há também no relatório, inquéritos militares para a apuração de venda ilegal de terras indígenas nos quais agentes públicos eram os acusados.
Outras provas da apropriação de terras indígenas também estão nas cópias do Diário da Justiça, anexado ao relatório, que aponta nome de pessoas que se apropriaram de terras indígenas no Estado.
O SPI era ligado ao Ministério do Interior e funcionou até 1967, quando foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai). O documento leva o nome de seu autor, o procurador Jader de Figueiredo Correia, que morreu em um acidente de ônibus em 1976, aos 53 anos e aponta que o órgão que seria responsável por proteger os índios das violações deu aval para a violência cometida pelas chamadas “frentes civilizatórias”.
Temor de retrocesso
O pesquisador Marcelo Zelic teme que atitudes do governo como a de começar a ouvir as pastas da Agricultura e Desenvolvimento Agrário e Combate à Fome nos processos de demarcações de terras indígenas representem uma mudança de rumo na política indigenista no Brasil. Em depoimento na audiência pública realizada no Senado sobre o relatório, Zelic considerou a mudança um retrocesso.
“Retornar a questão da demarcação das terras indígenas e as políticas públicas voltadas aos índios à esfera de influência do Ministério da Agricultura é um enorme retrocesso civilizatório. E é um retrocesso porque, de fato, as barbaridades que se relatam ali, no Relatório Figueiredo, foram monstruosas”, destacou.
“O Ministério da Agricultura, como já mostrou a experiência histórica, possui interesses conflitantes, como uma política pública de respeito à cultura, a recuperação de áreas subtraídas, a demarcação e preservação dessas áreas de existência das populações indígenas do Brasil”, justificou.
Crise
Na semana passada, a ministra Gleisi Hoffmann, voltou a defender que outros órgãos do governo além da Fundação Nacional do Índio (Funai) participem do processo de demarcação de terras indígenas. Atualmente, o decreto que trata do tema diz que a Funai pode solicitar a ajuda de outros órgãos públicos, mas o governo quer tornar obrigatório ouvir também as pastas que tratam do tema agrário e deve regulamentar essa mudanças até o fim desse semestre.
Também na semana passada, em meio à maior crise indígena do governo Dilma Rousseff, a presidente da Funai, Marta Azevedo, deixou o cargo alegando problemas de saúde. Marta pediu para sair após conflitos entre índios terena e fazendeiros no Mato Grosso do Sul, mas também após uma série de posições tomadas pelo Planalto que explicitaram o tom da política indigenista que o governo quer adotar.
O governo também passou a levar em consideração um relatório produzido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) que indica que terras no Paraná, que a Funai pretende ver demarcadas não são ocupadas por índios. A questão diz respeito diretamente à ministra Gleisi Hoffmann que é do Estado e que pretende se candidatar no próximo ano ao governo do Paraná.
“Quando a Ministra Gleisi Hoffmann propõe a influência da Embrapa para discutir o papel da Funai, nós estamos voltando a esse passado. Nós não precisamos, pelas histórias que são levantadas, de uma posição que junte os antagônicos para decidir sobre os indígenas”, declarou Zelic.
Na quinta-feira, índios mundurukus se uniram para protestar no Palácio do Planalto contra diversos projetos do governo para a construção de usinas hidrelétricas na Bacia do Rio Tapajós, no Pará e no Mato Grosso. Os índios queriam ser recebidos por Dilma e recusaram uma carta enviadas a eles pela Secretaria-Geral da Presidência da República, designada para resolver o problema. Nesta semana, eles invadiram a sede da Funai.


vi no Racismo Ambiental

terça-feira, 11 de junho de 2013

Índios reivindicam terras sob disputa em MS desde 1930

Índios reivindicam terras sob disputa em MS desde 1930:
Noel Patrocínio, filho de um dos terenas que viajaram ao Rio de Janeiro nos anos 1930
Noel Patrocínio, filho de um dos terenas que viajaram ao Rio de Janeiro nos anos 1930
Fabiano Maisonnave – Folha de S.Paulo
Enviado especial a Sidrolândia (MS)
Uma comitiva de índios terenas da região de Sidrolândia (70 km de Campo Grande) viajou à capital federal para exigir ampliação de terras. A notícia parece de agora, mas apareceu na imprensa carioca em 1930.
Um dos três integrantes da viagem ao Rio de Janeiro foi André Patrocínio, pai do professor aposentado Noel Patrocínio, 81. Ele é morador da aldeia Buriti, a maior comunidade da área indígena de 2.090 hectares demarcada nos anos 1920, hoje com cerca de 5.000 pessoas.
“O cacique disse ao meu pai: ‘O governo mediu uma terra muito pequena, não dá para nós’”, conta Patrocínio.
A aventura não foi bem-sucedida. “Não conseguiram falar com o chefão. A vida política tem hoje seus momentos de turbulência. Imagina naquela época.”
Segundo o coautor da perícia judicial sobre a área em disputa, o antropólogo Jorge de Oliveira, a capital estava em plena Revolução de 1930. “A viagem saiu em um jornal da época, porém em um tom um pouco jocoso.”
Essa perícia, assinada também pelo antropólogo Levi Pereira, foi iniciada em 2003 a pedido da Justiça e concluiu que os 17 mil hectares reivindicados pelos terenas são terra indígena. A decisão em primeira instância foi favorável aos fazendeiros, mas o caso continua na Justiça.
Os terenas têm presença antiga na região e, historicamente, buscaram se aproximar do homem branco. É o grupo com maior população fora de aldeias –9,6 mil, segundo o IBGE. Corresponde à quinta maior etnia do país, com 29 mil integrantes.
Só em Campo Grande, há sete “aldeias urbanas”, áreas com maior concentração da etnia. Ali, é comum vê-los trabalhando em frigoríficos.
“O que diferencia o terena é o intenso contato com o mundo não indígena e a aliança com outros povos. Apesar disso, consegue manter seus elementos culturais mais fortes, como a língua, a dança e a atividade agrícola”, explica o doutor em história Wanderley Cardoso, que hoje ensina na sua aldeia natal, em Aquidauana (MS).
Guerras
O historiador da Guerra do Paraguai (1864-1870) Francisco Doratioto diz que os terenas foram um dos grupos que se aliaram ao Exército brasileiro. Ele cita o escritor Visconde de Taunay (1843-1899), que os descreveu como “índios mansos, amigos, aliados”.
O envolvimento dos terenas com os militares se estendeu até a Segunda Guerra Mundial, quando vários deles lutaram na Europa como pracinhas da Força Expedicionária Brasileira.
Apesar dos vários registros, os fazendeiros da região dizem que os terenas não são do território brasileiro.
“São paraguaios. Uns alegam que lutaram a favor do Brasil, mas eu não acredito”, afirma Marcos Correa, 33, dono de 3.480 hectares dentro da área reivindicada.
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Compartilhada por Jorge Eremites de Oliveira.