quinta-feira, 14 de março de 2013

A ficcionalização da realidade - Marc Augé


Nesses dias de julgamentos, eleições papais, deputados polêmicos e outras amenidades, Marc Augé traz algumas reflexões sobre o problema da midiatização, mostrando o quanto é improdutivo e emburrecedor ....


A ficcionalização da realidade


Em alguns programas de televisão, a realidade transforma-se em ficção, desde que seja explicado que esta ficção não é propriamente uma mentira, nem propriamente uma invenção, ainda que a imagem continue sendo enganosa

Marc Augé

Se é fato que o mau humor é proibido, uma pontinha de tristeza ou uma lagrimazinha não pegam mal: pelo contrário, dão mais vida ao espetáculo Alguns anos atrás, durante uma viagem a Nova York, desembarquei num hotel de Manhattan e fui logo ligando a televisão, para ir acostumando o ouvido. Enquanto tomava um banho e trocava a roupa, ia acompanhando por alto o programa. Imaginei tratar-se de um desses seriados cujo realismo os torna atrativos: a história de um escritório de advocacia em que vários de seus representantes (homens e mulheres, negros e brancos, todos corretamente repartidos) eram constantemente levados a defender com o devido zelo os respectivos clientes perante o tribunal -- apesar das preocupações, problemas de saúde, de família, de coração ou de dinheiro que os envolviam e também nos eram harmoniosamente relatados ao longo de cada episódio. A cena do tribunal, pelo menos dessa vez, me pareceu demasiado longa. Passei a escutar com mais atenção e então compreendi que não estava assistindo a um seriado, mas a um julgamento real, transmitido ao vivo. Durante essa semana, foi difícil marcar reuniões para discutir com meus colegas na universidade, pois eles só pensavam em voltar para casa para acompanhar a transmissão dessa novela judicial. Fair-play e um pouco de sadismo Em programas de televisão do tipo "Roda da Fortuna", o resultado se deve exclusivamente ao acaso. O que sempre me surpreendeu é que, por alguma razão, o vencedor do jogo era entusiasticamente aplaudido. Eu sei que na televisão os aplausos obedecem a uma certa ordem e fazem parte do espetáculo. No entanto, a alegria do público não parece ser menos real que a do vencedor. Quanto aos perdedores, também ganham aplausos, parabéns e são efusivamente cumprimentados: na realidade, eles não têm opção, pois se demonstrassem mau humor, logo perderiam a simpatia do público (tanto o do auditório, quanto o outro, infinitamente maior, que está diante das telinhas).

A fronteira entre realidade e ficção é questionada porque vivemos num mundo de imagens que não é real nem falso: a realidade transforma-se em

ficção O importante é jogar o jogo e respeitar uma certa moral: o ideal de fair-play, lembrado vez por outra por um animador atento, e um pouquinho de sadismo, pois, se é fato que o mau humor é proibido, uma pontinha de tristeza ou uma lagrimazinha não pegam mal. Pelo contrário, dão mais vida ao espetáculo, pois são verdadeiras e porque é duro, para um desempregado ou para um assalariado que ganha uma miséria por mês, ver o outro embolsar uma quantia de algumas dezenas de milhares de reais de que ele estava tão perto. O fascínio da imagem Em ambos estes casos, percebe-se bem que é a fronteira entre a realidade e a ficção que é questionada. É questionada porque vivemos num mundo de imagens que não é real nem falso. Nesse sentido, a realidade transformou-se em ficção, desde que seja explicado que esta ficção não é propriamente uma mentira (por exemplo, com o passar do tempo, foram reveladas coisas bastante curiosas sobre a guerra do Golfo), nem propriamente uma invenção (afinal, a guerra existiu, de fato), ainda que a imagem continue sendo enganosa: ao não mostrar tudo, ela não diz nada; ao não dizer tudo, não mostra nada. A imagem associaria a guerra do Golfo, dessa forma, a uma espécie de vídeo game em que não tivessem ocorrido mortes reais -- as dos iraquianos de que nunca se fala.

Há muitos relatos da história contemporânea que não saberíamos garantir se pertencem à realidade ou à ficção, embora ocorressem diante dos nossos olhos São inúmeros os relatos da história contemporânea que não saberíamos garantir se pertencem à realidade ou à ficção, embora, de certa forma, ocorressem diante dos nossos olhos (na telinha). Atualmente, uma imagem é um acontecimento, ou um ser (ou ambos, ao mesmo tempo) que não é real nem fictício e, por isso mesmo, fascina. Tem o peso do real e a irrealidade de uma novela. William Clinton, por exemplo, era o chefe de Estado da nação mais poderosa do mundo, mas nunca esteve tão presente aos olhos do mundo inteiro como quando se tornou o homem da Monica, o homem do charuto barato, o exibicionista que não sabíamos se conseguiria escapar às acusações dos procuradores. Da ficção à obscenidade Todos os "heróis" do cotidiano são, de certa forma, "imagens", e podem tornar-se a personagem central de uma história deste tipo. As próprias crianças, que foram criadas com a televisão, podem ser levadas a pensar que é necessário tornar-se uma imagem (entrar na telinha para aparecer, seja a que preço for) para ter certeza de existir. O charuto de Clinton ou a Mercedes de Lady Di incentivam ao voyeurismo de todo mundo e, em última instância, sugerem morais tão contraditórias como intercambiáveis.

Então, o que é que nos poderia chocar ou atrair nessa "diversão" (retomando um termo dos eufemismos lingüísticos da televisão) chamada "Loft Story" 1? Tudo e nada, embora tudo, nesse programa, corresponda a mais um passo para a ambigüidade acima descrita. Um passo a mais para a ficção: quem poderia acreditar na realidade desta ilha? Não se trata de uma prisão, pois as pessoas saem, inclusive antes de quererem sair; trata-se quase de uma utopia, uma área de luxo num subúrbio e -- cúmulo do irrealismo -- um loft 2 sem aparelho de televisão. Um passo a mais para o real: é a lei dos pequenos grupos (a psicologia social sabe muito bem disso) que vão se decompondo aos poucos. A linguagem, as suspeitas, a raiva e os medos são reais. Talvez seja justamente isso o que choca mais algumas pessoas: essa presença inocente, insistente e brutal de uma outra geração e de uma outra classe social. Um passo a mais no subentendido, pela omissão: as câmeras filmam tudo, mas nós só vemos o que nos é mostrado. Um passo a mais para o sadismo: os atores se eliminam (se "excluem") uns aos outros. O medo da "exclusão" cria, no ambiente a portas fechadas do loft, um clima de ódio teatral. Um passo a mais para o que não se pode deixar de chamar obscenidade: o espetáculo, o exibicionismo, a carne fresca. Uma síntese ideológica

Clinton presidia a nação mais poderosa do mundo, mas nunca esteve tão presente aos olhos do mundo inteiro como quando se tornou o homem da Monica E por que esse "passo a mais" seria tão cativante para um público em sua maioria jovem? Porque dá a cada um dos participantes a sua realidade plena de imagem. Chorar por Lady Di ou por um dos participantes do programa acaba sendo a mesma coisa. Entre a morte real e a morte simbólica, há uma diferença mínima na opinião daqueles que se identificaram com as personagens. Em ambos os casos, trata-se da morte de uma imagem. Ora, as imagens não podem, não deveriam morrer. Elas são criadas para ajudar a viver, a acreditar em nossa existência. E o último toque de sadismo do jogo é justamente o de matar as imagens após tê-las fabricado. O espelho já não basta. É preciso a telinha e o olhar dos outros. Sem a telinha, as imagens morrem rapidamente, ainda que a imprensa "especializada" as insufle por algum tempo com um pouco de oxigênio e a ilusão da sobrevivência. "Loft Story" sintetiza todos os principais traços da ideologia em que vivemos - a ideologia do presente, que tem o jogo por instrumento e se traduz pela confusão entre pessoas, atores e personagens. Como qualquer outra ideologia, ela envolve manipuladores e manipulados, exploradores e explorados. A novidade não está aí. Estaria mais na distinção que fazia Freud entre a criança e o adolescente. A criança -- dizia ele -- não confunde o mundo de seus jogos com a realidade, ao contrário do adolescente, que acredita em seus fantasmas. Seria possível concluir que se atualmente a humanidade não volta à infância, ela passa pela difícil etapa de sair da adolescência.



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